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Adalberto

por Nemo Nox

Es kann der Frömmste nicht in Frieden leben,
wenn es dem Nachbarn nicht gefällt!

- Schiller


Adalberto havia trabalhado oito anos para chegar àquele momento. Já tinha tudo planejado desde os tempos da faculdade. Logo depois da formatura, com o título de bacharel em Publicidade & Propaganda debaixo do braço, arranjaria um estágio, mesmo que não fosse remunerado. Em seis meses, estaria pronto para ingressar numa grande agência. E então, seria só juntar algum dinheiro, todos os meses, e em breve teria o suficiente. Poderia finalmente comprar o seu próprio apartamento. É claro que nem tudo havia sido exatamente como planejado. Adalberto pensara em dois anos. Foram necessários oito. Adalberto queria um apartamento de três quartos. O dinheiro só deu para um quarto-e-sala. Mas isto eram apenas detalhes.

A mudança também havia sido longamente planejada, nas aulas de Teoria da Comunicação. Tiraria um mês de férias e assim teria bastante tempo para pôr as coisas em ordem. E para desfrutar das delícias da tão esperada independência social. Agora, ali estava Adalberto, instalado no seu novo apartamento, com quase tudo já no seu devido lugar, e com três semanas de férias pela frente. Havia finalmente chegado ao último item do seu planejamento: aproveitar a vida.

Mas, logo na primeira manhã, bem cedinho, os problemas começaram. O relógio digital marcava seis horas e cinco minutos quando Adalberto foi despertado por um forte e afinado assobio. Ainda um pouco sob os efeitos do sono e das caipirinhas da noite anterior, levou alguns instantes para se dar conta do que estava acontecendo. A melodia era desconhecida, provavelmente criada pelo próprio assobiador, e, ricocheteando pelos azulejos do corredor, reverberava irritantemente. Parecia que o vizinho do andar de baixo, além de sair cedo para o trabalho, acordava de bom humor. E assobiava bem alto. Após dois ou três minutos de suplício musical, o silêncio voltou aos corredores do edifício e ao quarto de Adalberto, que pôde voltar a dormir.

Isto repetiu-se nos três dias seguintes, pontualmente às seis e cinco da manhã. O mesmo assobio penetrante, a mesma melodia monótona fazendo com que Adalberto tivesse um despertar precoce nada bem-vindo. Dois ou três minutos depois, o silêncio. As leis da acústica certamente saberiam explicar por que aquele som infernal que saía dos lábios do vizinho de baixo tinha que terminar vibrando nos ouvidos sonolentos de Adalberto.

Foi no fim do quarto dia, quando voltava de mais uma noitada com os colegas da agência, que Adalberto teve a brilhante idéia. Olho por olho, dente por dente. Assobio por assobio. A forma mais segura de justiça. Se o vizinho insistia em atrapalhar o seu sono todas as manhãs, com aquele assobio irritante, então teria o seu próprio sono atrapalhado todas as noites, também por um assobio. Tomou fôlego e subiu as escadas trinando, o mais alto possível, uma melodia inventada especialmente para a ocasião. Naquela noite, Adalberto dormiu feliz.

Felicidade que durou pouco. Porque na manhã seguinte, exatamente às seis e cinco, Adalberto foi novamente acordado pelo vizinho. Desta vez, não com o já conhecido e odiado assobio, mas com uma possante e igualmente odiosa voz. A voz do vizinho. A cantarolar, porém, a mesma música. Naquele momento, juntando-se aos vapores do sono, surgiram no íntimo de Adalberto dois sentimentos antagônicos: o de êxito, porque a sua investida da noite anterior havia surtido algum tipo de resultado, e o de fracasso, já que o vizinho rapidamente se recuperara e voltara a assumir uma posição vantajosa na disputa. A melodia, agora cantada em laralás e laralís, havia ganho também alguns minutos a mais de duração. Ascendera à categoria de "peça musical".

Adalberto não era do tipo que desiste facilmente. Só dava uma competição por terminada quando o adversário capitulava. Levara oito anos para comprar o seu próprio apartamento. Se preciso fosse, levaria mais oito para calar o vizinho. Naquela mesma noite, partiu novamente para o ataque. Às três da madrugada, cantarolando bem alto a sua própria composição, desceu lentamente pelas escadas até ao térreo e depois voltou ao seu andar. Isto com certeza também tinha acordado os outros moradores, mas não fazia diferença. Afinal, se eles estavam na linha de fogo, que se protegessem. Adalberto ficou tão contente com a versão vocal da sua cançoneta que, levado pelo entusiasmo, repetiu a descida e a subida, colocando desta vez, junto com os laralás, um refrão recheado de ohs e de uhs. Depois, enquanto se ajeitava na cama, ponderou que, se não estava muito afinado, ao menos atingia o efeito desejado.

Durante toda a sua vida, Adalberto foi educado na arte da competição. Na escola primária, disputou o posto de capitão da equipe de futebol. No ginásio, lutou pelas melhores notas. Depois, teve que brigar por uma vaga na faculdade. Teve que batalhar pelo emprego, esgrimir por um bom salário e guerrear pela preferência das mulheres. Mas, naquela manhã, ele soube que estava a lidar com um adversário de respeito. Provavelmente, o melhor que já havia enfrentado. Quando o digital do relógio mudou para os cinco minutos das seis horas, Adalberto foi novamente despertado pela voz do vizinho, que, além da habitual alegria matinal, parecia agora exibir um toque adicional de desafio. É que a já tão conhecida melodia de todas as manhãs ganhara uma letra, uma completa e elaborada letra. "Seis e cinco da manhã, / Em teu corpo, um suave cheiro de maçã..." Naquele dia, mesmo depois da saída do vizinho para o trabalho, Adalberto não conseguiu voltar a dormir.

Durante três dias e três noites, em vão lutou Adalberto para colocar uma letra na sua cançoneta. Ora sobrava-lhe uma sílaba, ora faltava-lhe uma frase inteira. Nunca havia sido muito bom a trabalhar com as palavras; isso era lá com o departamento criativo e os seus redatores. A ele, cabia apenas convencer o cliente de que o anúncio era bom. E o anúncio era sempre bom. Agora, porém, tudo se resumia a uma questão de honra. O ideal seria não só criar uma letra, mas criar uma que fosse ainda melhor que a do vizinho. E já estava com três dias de desvantagem. Todas as manhãs, pontualmente às seis e cinco, voltava a ouvir aqueles malditos versos, perfeitamente encaixados naquela maldita melodia, cada vez mais alegres, cada vez mais confiantes. Urgia dar um fim naquilo.

Era uma tarde de sábado quando Adalberto teve a idéia: superaria o vizinho de uma vez por todas, sem precisar seguir quebrando a cabeça com rimas e métricas. Não foi muito fácil encontrar uma loja de instrumentos musicais aberta, mas no fim do dia Adalberto acabou por achar exatamente o que queria: um velho trombone de segunda mão. Naquela madrugada, ele só parou de tocar quando recebeu uma gentil visita da polícia informando que os moradores da outra esquina estavam reclamando do barulho. Era a realização total. Adalberto tinha a certeza de que a disputa se aproximava do final.

No domingo, levado pelo hábito, acordou às seis e cinco. Nenhum ruído. Nada de assobios, nada de vozes. Seria a capitulação ou apenas uma trégua? Tudo indicava a vitória de Adalberto. Virou-se para o lado e, sorridente, voltou a dormir. Perto do meio-dia, levantou-se, tomou banho e resolveu sair para o café dominical. Mas, ao abrir a porta do seu estimado apartamento, deparou-se com um pequeno embrulho aninhado sobre o tapete oferecido pelos colegas da agência. Ali, sobre o hífen do "Bem-Vindo", estava aquele anônimo pacote. Mesmo antes de o abrir, Adalberto já sabia do que se tratava: uma cassete de áudio, jocosamente oferecida pelo seu vizinho.

Foi somente bem depois do jantar que Adalberto reuniu coragem para ouvir a cassete. Já ia no terceiro whisky quando carregou na tecla "Play" do aparelho da sala, para confirmar os seus mais negros temores. A música fluiu com limpidez pelas caixas de som, tocada por uma competente banda funk e cantada pela inequívoca voz do vizinho. "Seis e cinco da manhã, / Em teu corpo, um suave cheiro de maçã...". Era uma gravação de nível profissional, tão boa como qualquer dos jingles encomendados pelos clientes da agência. O cantor era afinado, e a banda exibia toques titanicamente contemporâneos. Como reagir àquilo? Como?

Adalberto sentiu no seu íntimo que havia chegado a hora de mudar as regras do jogo. Esgotadas todas as alternativas, era preciso recorrer à violência. Ou pelo menos à ameaça de violência. Iria até ao apartamento do vizinho, exigiria o silêncio matinal e imporia o respeito pela força dos músculos. Com a coragem encontrada no fundo do sexto copo de whisky, e munido da maior faca da cozinha, Adalberto saiu do seu apartamento e desceu as escadas em busca de justiça.

Inesperadamente, encontrou entreaberta a porta do vizinho. Lá dentro, uma total escuridão. Ter-se-ia esquecido de fechar a porta? Pouco provável. A casa teria sido assaltada? Muita coincidência. Estaria à sua espera? Adalberto empurrou cautelosamente a porta e tentou em vão distinguir qualquer coisa na sala escura. Com passos vacilantes entrou no apartamento. Um tímido "ó de casa!" não obteve resposta. Mais alguns passos e esbarrou num sofá. Tentou mais uma vez: "ó de casa!". Subitamente, sentiu eriçarem-se os pêlos da sua nuca. Parou onde estava e aguçou os ouvidos. Ouviu dois estampidos muito altos, acompanhados quase simultaneamente por dois pequenos clarões vindos de um canto da sala. Sentiu uma aguda dor no peito e compreendeu que havia sido baleado. Quis gritar mas não teve forças. Notou que havia rolado por cima do sofá e estava com o rosto encostado ao chão, que cheirava a verniz. No mesmo canto de onde haviam sido disparados os tiros, acendeu-se um abajur. Adalberto pôde ver, pela primeira vez, com o canto do olho direito, o rosto do seu vizinho. Ele discou alguns números no telefone e informou a polícia que havia baleado um ladrão em sua casa. Depois de desligar, lançou um sorriso em direção a Adalberto e acionou o pequeno aparelho estereofônico ao lado do telefone. A última coisa que Adalberto ouviu antes de morrer foram os ritmados versos da canção: "Seis e cinco da manhã, / Em teu corpo, um suave cheiro de maçã..."

***

(Este texto recebeu uma Menção Honrosa no VII Prêmio Jorge Andrade, concurso nacional de contos, em 14 de Dezembro de 1996.)


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