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Tiros
por Luis Fernando Veríssimo (in Zero Hora)

O leitor Nemo Nox escreve para discordar do que eu disse sobre o filme O terceiro tiro, do Hitchcock, e sobre a obsolescência - minha palavra comprida da semana - dos filmes antigos em geral. Escreve o Nemo: "Não assisti, como você, a O terceiro tiro quando foi lançado pela primeira vez, mas tenho uma boa desculpa: eu ainda não tinha nascido." Mas ele gostou do enredo e do understatement - que, segundo Nemo, o próprio Hitchcock define como a apresentação em tom ligeiro de acontecimentos muito dramáticos - com que é apresentado. Ele compreende, no entanto, que eu não queira levar O terceiro tiro para uma hipotética ilha deserta. O que não entende é a minha afirmação de que o cinema é uma arte perecível e que suas técnicas de narrativa ficam obsoletas em pouco tempo. "Existem até filmes mudos, e Chaplin é o melhor exemplo, que continuam atuais. E o que dizer então de Cidadão Kane, do Orson Welles? Alguém já criou algo, mesmo depois de quarenta anos, que deixasse sua narrativa obsoleta? Será que a sua lista de filmes que levaria para uma ilha deserta" - conclui o Nemo, que diz que já procurou a tal ilha Hipotética em vários mapas e não encontrou - "não inclui filmes antigos?"

Para a minha ilha, que além de ser deserta deve ter gerador próprio senão o videocassete não funciona, eu provavelmente levaria mais filmes antigos do que novos, Nemo. Mas o que eu disse, ou pensei que disse, no meu comentário foi que para ver filmes de uma certa idade a gente deve ir disposto a filtrar tudo o que já envelheceu - como, invariavelmente, a trilha musical - para aproveitar o essencial. O essencial não perde o valor. Você citou Chaplin, há milhares de outros exemplos. Muita coisa também é redimida pela nostalgia, e o que encanta é justamente a sua antiguidade. Mas o cinema, mais do que qualquer outra arte, depende da técnica, que tem um efeito cumulativo quase imperceptível na nossa percepção. Só vendo filmes antigos é que nos damos conta de como certos recursos de narrativa antes corriqueiros se tornaram dispensáveis ou ineficazes - e portanto obsoletos. Cidadão Kane foi um filme tão inventivo e inovador que influenciou a linguagem cinematográfica dos 40 anos seguintes. Resultado: para ver Cidadão Kane, hoje, com o deslumbramento que ele merece, você precisa fingir que nao viu mais nenhum filme parecido com ele feito depois. Um filme como Kane merece este ato deliberado de depuração, de suspensão do espírito crítico. O terceiro tiro, na minha opinião, não merecia.

Mas escreva de novo, Nemo. É um prazer conversar com você. Apesar de minha dificuldade em conceber alguém que ainda não tinha nascido em 1956.



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